No início de outubro, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da Organização das Nações Unidas (ONU) foi anunciado vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2020, por sua luta humanitária incessante em mais de 80 países no combate à fome e na promoção da paz. O PMA surgiu em 1963 no seio da FAO e tornou-se uma organização autônoma no Sistema Nações Unidas que garante o acesso a alimentos às pessoas mais vulneráveis do planeta. Aproximadamente 65% do trabalho do PMA ocorre em países afetados por conflitos. O 2º e o 16º dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU em 2014, chamam-se, respectivamente, Fome Zero e Agricultura Familiar e Paz, Justiça e Instituições Eficazes. A premiação do PMA com o Nobel da Paz é o reconhecimento do esforço e dos resultados do referido programa em articular esses dois objetivos: combater a fome e promover a paz.
O Nobel da Paz para o PMA é uma forma de jogar luz no tema do combate à fome como promotor da paz e de quebra recupera os estudos e as denúncias que prenunciaram os vários esforços humanitários reconhecidos nesta ocasião.
Estudos relevantes neste campo temático são do brasileiro Josué de Castro que, a partir de seus estudos, como médico, ainda no Recife, denunciou a fome como mazela política e não como fenômeno natural.
Além do livro clássico "Geografia da Fome" publicado em 1947 e de tantos outros trabalhos, há uma pequena joia publicada na forma de artigo na Revista Pourquoi em Paris chamado "Fome como força social: fome e paz". Nele, o autor afirma que "a fome é um fenômeno geograficamente universal" e então, sua superação demanda esforços em múltiplas escalas. Em seguida apresenta a cifra de 100 milhões de indivíduos que morriam de fome nos Estados Unidos e diz que "são computados nessa cifra não apenas os casos de fome total, de verdadeira inanição, mas também os casos mais frequentes e muito mais generalizados de fome parcial de fome oculta ou específica, resultante da carência, no regime normal, de certos princípios nutritivos indispensáveis à vida".
Mais adiante o autor descreve os efeitos da fome que "age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral". Depois de descrever as zonas de fome, pergunta e recomenda o autor: "Qual deve ser o comportamento político do mundo diante deste terrível caos social? Para que nosso mundo possa sobreviver com suas instituições e seus princípios fundamentais, somente um caminho é praticável: maximização de esforços para restringir ao mínimo essas zonas de fome".
O autor então conclama os líderes mundiais a seguirem um caminho para a salvação do mundo que consiste em "facilitar progressivamente sua reestruturação econômica e social a partir de princípios mais humanitários - princípios que coloquem o homem como o centro do pensamento e do interesse social" e apresenta a chave do referido caminho que "se encontra na concepção fundamental de que vivemos atualmente num mundo que é um organismo vivo, unitário, onde todas as partes estão indissoluvelmente ligadas, o que significa que, desde que uma dessas partes sofra de fome e esteja ameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo organismo está ameaçado pela mesma infecção". Assim, o Nobel da Paz 2020 concedido ao PMA/ONU, como nos ensina Luís Carlos Beduschi Filho (professor da USP e oficial da FAO) é inspirador e importante: reconhece a importância do multilateralismo; é um alerta potente sobre a necessidade de cooperação entre as nações; um convite ao diálogo e à diversidade, tão necessários para enfrentar as crises que estamos vivendo; e reposiciona na agenda política o tema do combate à fome como elemento fundamental para a construção de um mundo de paz, algo alertado por Josué de Castro.