Cultura

Solo do Pedro Cardoso

1 SET 2023 • POR da Reportagem Local • 09h51
Solo do Pedro Cardoso - Divulgação

Saí daqui pra Rua Augusta, ver o novo solo desse menino que foi embora do país, mas já voltou porque a saudade não se traduz. Nem a dele nem a nossa. Eu sempre achei admirável a maneira como Pedro Cardoso conduz seus trabalhos e pensamentos sobre sociedade de maneira autoral.

Agora ele está em cartaz na capital e lá estava eu no clube de comédia dos Barbixas. Tudo é de repente, então Pedro entra em cena já de sopetão, e na sua convocatória diz para o que veio.

Está livre como o espírito que é, se posiciona no palco no meio de dois cavaletes e ali nicia "O Começo da Vida" na toada do humor insolente do palhaço, ele chama o público para dançar as memórias que a gente nem sabia que tinha. Me fez pensar em minhas filhas, em como eu e toda minha incapacidade de coadjuvante, cortei um cordão umbilical e logo em seguida quase decepei o dedo com um bisturi. Refletiu a mim e ao meu complexo de Édipo.

Aliás, a nós. Pensando que era quinta-feira, às 21h e a casa estava cheia de olhos vivos como os dele naquela troca insana de "agoras" que ele jogava na nossa cara. Nessa caminho, ele está consciente de seus privilégios. Afirma o desastre que é o parto, como tudo aquilo é feito pra dar errado e então, sem errar afirma a mulher como peça central e chave de tudo, não só do parto, mas do mundo em sua totalidade.

O rapaz é um insurgente, ele se alfineta, como um voodoo do pai e coloca em cheque uma masculinidade nociva e frágil que escolhe o pior carrinho do supermercado, enquanto o riso da plateia se divide em prazer e receio. Maestro da risada dos outros. Nessa aula de palhaçada, ele vai se mostrando vulnerável, e enquanto rimos dele, vamos tomando consciência de que existir é com a gente mesmo.

Que essa humanidade comum - não igual, veja bem - é de todos os que estão sentados ali vendo alguém nascer e por isso, nascendo com ele. Desafiando o tempo, o anarquista segue sua pauta. Questiona a linguagem. Questiona a própria neurodivergência. Invoca Paulo Freire e Augusto Boal.

Tudo isso enquanto sutilmente coça as costas. Uma daquelas coceiras inalcançáveis nas costas. Pedro Cardoso, no meio de um discurso inflamado sobre o sofrimento de existir demais, coça com a unha do polegar o meio das costas. Deus habita os detalhes. Ele deixa claro que o invocamento do início da jornada é pra encontrar-se com o único mal irremediável.

É uma surra de existência. E lá vem Deus. E Dionísio. E ditadura. Será que ele conhece o Maurício Pereira? Conhece, ele é da arte. Esses artistas se conhecem. E ali se repetindo, de forma surpreendente, Pedrinho - como nas piadas que sempre tem um Pedrinho - me faz recorrer a outros autores enquanto fala. É como se o Douglas Adams e Luiz Fernando Veríssimo tivessem escrito "Memórias do Subsolo".

Agradeço ao palhaço e saio de lá sem saber se foi cena ou coceira. Pedro lá no começo, declara que a viagem é só de ida. Ora, eu saí de Suzano pra voltar, meu amigo! E eu voltei, mas voltei envelhecido pelos questionamentos de Pedro, o "Recém Nascido".