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Jornal Diário de Suzano - 27/04/2024
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Coluna

A morte do Leão

04 janeiro 2024 - 05h00

Leão, morcego, cachorro. Leão é o nome de um cachorro que de tão pequeno se parecia com um morcego. Aprendi muito com esse bicho. Ao escrever esse texto lembro da história contada por Edu Lobo sobre Vinícius de Moraes. Diz o cantor que em visita à casa do poeta, esse o chamou para observar seus bichos - pato, cachorro, gato e pavão - e lhe disse: "passo o dia aqui, olhando para esses animais, e sabe que já aprendi muito mais com eles do que em todos os meus anos de Itamaraty?". É impressionante como a observação dos bichos pode nos ensinar sobre nós mesmos e nossas relações humanas.
O Leão morreu. Nasceu em 25 de agosto de 2007 e morreu em 28 de dezembro de 2023. Afogado. Morte besta. Negligência. Ele, velho, solto, sem gente espreitando. Descansou. Para os mais pragmáticos, deu descanso também. O fato é que olho para o Leão morto e penso na vida, em sua chegada, no meu pai que o recebeu dos professores Said e Hildebrando, e lhe deu o nome, irônico, Leão, para um cachorro de 3kg.
Olhar para esse bicho morto me faz repassar sua vida: as caminhadas, os latidos, a energia em subir em todos os lugares. Certa vez reclamei para um amigo: como dá trabalho esse bicho com tanta energia. 
E ele, veterano em cuidar de cachorro, disse: é melhor assim, que a perda da saúde, da energia, a decrepitude. Eis que veio pouco a pouco, a debilidade: a diminuição dos saltos, dos passos. Já não subia na mesa, nas cadeiras, sequer na cama, mais baixa. Mas andava, gostava de andar e de tomar sol. Comia e bebia bem para o padrão de seus 3kg. Não havia perdido um dente sequer. Exigia passeios diários e nem sempre os completava. Cansava. 
Alternava caminhada e colo. Exigente, altivo, mesmo velho, reclamava. Jamais parou de latir nem de mijar (dizem que é para marcar território). Nos últimos dois anos, dormia bastante. Acordava sempre que alguém chegava. Quanto a mim, quando chegava da aula, já próximo da meia noite, ele arranhava a porta da sala querendo comida. Íamos para a cozinha. 
Ele comia. Ia, voltava, ia de novo. E agora morre de forma besta. Me ensinou a observar a vida que passa, com seu olhar compassivo. Enfim, valeu por tudo que me ensinou. A gente muitas vezes precisa da morte de um cachorro para refletir sobre a vida. Ele também me ensinou que a vida está sempre por um fio.
Na morte do Leão, lembro-me de São Francisco que festejava o humano, os animais, as plantas, o sol, a lua, os elementos da natureza; lembro-me também de meus mortos dos quais não falo e não escrevo com frequência para não me tornar cronista de obituário, embora muitos deles tenham também me ensinado bastante: pai, tios e tias, parentes diversos, amigos e amigas, muitos heróis anônimos. Lembro-me finalmente dos vivos, muitos que conheciam o Leão.
Refletindo sobre a morte do Leão recorro a Sarah Bakewell, biógrafa do filósofo Montaigne, ao dizer que "morremos da mesma maneira que adormecemos: simplesmente vamos nos distanciando. Se alguém tentar nos trazer de volta, ouvimos sua voz "nas fímbrias da alma". A vida fica presa por um fio, pendurada, como disse ele próprio , na ponta dos lábios. Morrer não é um ato para o qual possamos nos preparar. É um devaneio sem sentido".
Ainda diante do Leão morto busco reagir com o próprio Montaigne: "Quero agir sem cessar e que a morte me encontre plantando as minhas couves sem pensar nela e menos ainda na imperfeição de minha horta". Assim morreu o Leão, agindo, andando, procurando o sol na beira da água.
Montaigne me ensina que "viver é aprender a morrer" e o Leão me ensina que, ao lamentar sua morte e repassar seus dias comigo, posso aprender a viver.