A terra e a propriedade no Brasil ou são privadas ou são públicas. Quando são privadas, legal ou ilegalmente, são vistas como "minhas". Quando são públicas, por sua vez, são de "ninguém" ou muito esporadicamente são do "governo", e sendo de "ninguém" ou do "governo", nada mais justo que se tornem "minhas". Dificilmente uma área, terra ou propriedade é vista como "nossa".
De quem é a praça? De "ninguém" ou do "governo". E como é de "ninguém, é ocupada por mendigos desamparados pelo poder público.
De quem é o trecho de rua sem saída em que eu moro? De "ninguém" e assim torna-se normal colocar uma guarita e um portão e fechar a rua privatizando-a.
Guilhermo O´Donnell (1936-2011), cientista político argentino radicado nos EUA, publicou artigo primoroso em 1988, chamado "Situações" em que relata microcenas da privatização do espaço público em São Paulo, dentre os quais: a passagem desavisada de uma pista para outra em "zigue-zague" por um motorista apressado; o uso de vaga exclusiva para portadores de necessidades especiais por outro motorista com porte atlético e sob o argumento de que se ele não fizer a referida ocupação da vaga pública e especial alguém a fará em seu lugar; a apropriação de trechos de praia; o fechamento de ruas com cancelas, portões e guaritas; e o uso de lombadas e quebra-molas colocadas nas ruas sem autorização pública.
Em complemento às microcenas, lembro da barricada que separa a praia da Riviera em Bertioga; o estacionamento em fila dupla em frente às escolas; a ultrapassagem pelo acostamento.
No entanto, há outras possibilidades e formas de apropriação do espaço público, de forma compartilhada e não privatizada: aproveitar o espaço de uma praça com amigos, fazer piquenique, andar de bicicleta, brincar com as crianças, sentar e ler um livro.
A prefeitura municipal, nesse sentido, pode ser grande colaboradora, uma vez que pode definir as formas de uso dos espaços, com atividades culturais, de esporte e lazer. Um bom exemplo conservar e iluminar os espaços públicos, bem como implantar equipamentos diversos. Também é importante a instalação de Internet gratuita em praças e outros espaços públicos.
A sociedade civil, por sua vez, pode reivindicar os referidos usos, além de detectar espaços que possam ser melhor utilizados. Associações podem responsabilizar-se pela realização de atividades culturais, recreativas ou sociais. Empresas podem apoiar financeiramente ou de outras formas essas iniciativas.
Os indivíduos, finalmente, devem apropriar-se das praças e espaços públicos como espaços deles, compartilhando-as em vez de pagar pelo uso do espaço privado.
A complexa partilha do espaço público (que é de "todos", e não de "ninguém") faz-me retomar o já referido texto de O´Donnell ao tratar da dificuldade de relacionar microcenas da privatização do espaço público com macrodramas sociais. Diante de tal dificuldade conclui o autor com um ditado castelhano: "yo no creo en las brujas, pero haber, hay". Ou seja, a dificuldade em tratar do espaço público como espaço de todos e compartilhá-lo com um mínimo de civilidade é fato e cabe aos Poderes Públicos estabelecer as regras para tornar a apropriação desses espaços mais civilizada. Usemos mais as praças públicas, exijamos mais calçadões púbicos.



