Gilberto Gil já disse em entrevistas que a primeira pessoa em que pensa quando cria uma canção é Caetano Veloso. "Será que ele vai gostar?" Se lhe parecer que não, muda tudo. A recíproca soa verossímil. "Será que Gil aprovaria?" E isso há mais ou menos 50 anos, desde que os baianos se conheceram quando um subia e outro descia a Rua Chile, em Salvador. A incidência do negro da capital no pensamento musical do caboclo de Santo Amaro, e vice-versa, é tamanha que, se um dos dois não existisse, o outro ainda existiria, mas seria algo bem diferente do que é. Gil e Caetano fazem hoje, a sequência de uma série histórica. Chegam a São Paulo para o show que mostram pelo mundo há dois meses cantando 27 canções com seus violões como se escrevessem a autobiografia que um dia negaram a terceiros. Falam de berço (Eu vim da Bahia, Gil, 1965), transcendência (Tropicália, Caetano, 1967), exílio (Terra, Caetano, 1978), migração (Sampa, Caetano, 1978), futuro (Expresso 2222, Gil, 1972), crença (Filhos de Gandhi, Gil, 1973), fé (São João Xangô Menino, Caetano e Gil, 1976), festa (Toda Menina Baiana, Gil, 1979) e morte (Não Tenho Medo da Morte, Gil, 2008). Se toda música de Gil é, em camadas mais ou menos profundas do subconsciente, uma parceria com Caetano, e tome vice-versa, é também sustentável dizer que, hoje, em seus respectivos 73 anos de idade, Gil anda com fé para trás enquanto Caetano segue caminhando contra o vento para frente. Não se coloca seus valores no tribunal. A ousadia pode estar tanto na reinvenção de linguagem que Caetano fez em seus três últimos discos roqueiros lançados com a Banda Cê quanto na regressão bossa novista até João Gilberto que obrigou Gil, aos 70 anos, a estudar e redimensionar seu violão. Ainda que não façam aparições em palco ou assinem músicas com frequência (sua última turnê foi em 1994, com Tropicália Duo), a preservação da marca 'Gil e Caetano' segue imaculada de crises e distanciamentos, ao menos, visíveis a olho nu. Mesmo quando se colocaram em posições conflitantes - a mais recente delas com Caetano recuando na questão das biografias, se dizendo a favor da liberação, enquanto Gil batia o pé por um resultado menos liberal -, seus pensamentos se completam. A irmandade longeva no meio musical não é praxe entre os criadores que atingem resultados acima da curva. É certo que Gil e Caetano só tiveram um grupo juntos, os Doces Bárbaros, em 1976, ao lado de Gal Costa e Maria Bethânia, um projeto para comemorar os dez anos de carreira de cada um deles e que deixou apenas um disco. Mas, se seguissem o roteiro dos duos estelares que inevitavelmente colidem em disputas de ego e de bolso, já estariam habitando planetas diferentes. Gil e Caetano são o modelo de matrimônio com o qual sonha a humanidade. Gil, com os anos, está se tornando um monge do Tibet que, se preciso, vai aos filósofos da Grécia Antiga para explicar por que o forró do sertão nordestino acabou contaminado pelos teclados do Calcinha Preta. Ele não julga, jamais. Sobretudo quando fala com a imprensa escarafunchadora, costuma sair do próprio corpo e fazer um sobrevoo pelo universo antes de trazer a resposta. Não há como pegá-lo na curva. Caetano mudou bastante. Jovem ou já nem tão jovem assim, era capaz de levar suas opiniões aos estertores. Enfrentava uma plateia inteira se ela resolvesse hostilizar Elis Regina e discutia política com o sangue nos olhos e as veias latejando no pescoço. Aos poucos, atingiu a serenidade e passou a falar menos, sobretudo com jornalistas. Existe ali uma tristeza mais visível, ou uma menor disposição para disfarçá-la. Dia desses, em que ela veio com tudo em seu quarto, que ele canta como sendo "o lugar mais frio do Rio", escreveu a devastadora Triste para seu recente álbum Abraçaço. E talvez esteja justamente nos tons da tristeza de Caetano e na alegria de Gil a intersecção definitiva para que Gil e Caetano se tornassem um só, Gil-e-Caetano. As músicas do show mostram Caetano levando sempre o peso e a melancolia das cidades enquanto Gil carrega a festa dos terreiros. Sem um, o outro não faria sentido.