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Jornal Diário de Suzano - 27/04/2024
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Coluna

Reflexões sobre o guichê

09 novembro 2023 - 05h00

Guichê é uma dessas palavras francesas que foram adaptadas para o português na forma de escrever, mas não foram traduzidas. Quando muito, podemos traduzi-la como balcão de atendimentos. O guichê está diretamente relacionado com o setor público. É para o guichê que nos direcionamos para pagar conta, pedir alvará, solicitar informação, entregar documentos. O guichê, nesse sentido, é um lugar de separação e de encontro do cidadão com o Estado: separação na medida em que de um lado do guichê está o servidor público com autoridade estatal e do outro lado do guichê o cidadão portador de direitos; encontro na medida em que estado e cidadão encontram-se diante do referido guichê para fazer valer alguma obrigação definida por normativa estatal.
O guichê, portanto, apesar de parecer inocente, é um dispositivo técnico e político. Cabe à autoridade constituída definir o que será resolvido diante do guichê (com hora marcada, fila, esperas intermináveis ou não), quem está obrigado a comparecer diante daquele dispositivo, e quem foi designado para fazer o atendimento, seja um servidor concursado a partir de requisitos definidos em editais e com perfis condicionados a partir dos tais editais, seja ocupante de cargo em comissão.
O atendente é alguém "poderoso". Nem todas as situações podem ser previstas, então muitas das decisões cabem a este atendente que de forma discricionária determina alguns de nossos destinos e o tempo de espera para que nossas demandas sejam atendidas ou não.
Diante do guichê refletimos muitas vezes sobre o atendimento que nos é dispensado e de forma paradoxal valorizamos o acesso facilitado às informações, o atendimento cortês e ágil, o vocabulário compreensível do atendente em detrimento do discurso técnico, o processamento das informações e a determinação precisa de prazos.
Onde reside o paradoxo? Está no fato de que essas exigências e qualidades do atendimento estão alicerçadas no direito do consumidor e na satisfação do cliente e não propriamente no direito do cidadão portador de direitos, origem e destino do serviço público. Essas duas perspectivas são excludentes entre si? Não, mas a perspectiva do cidadão é mais abrangente que a do cliente e na ausência da garantia de nossos amplos direitos como cidadãos nos conformamos, elogiamos e agradecemos a substituição de nossos chapéus de cidadãos pelos chapéus de clientes e consumidores.
Mas isso talvez seja pouco em nossas reflexões diante do guichê. Ficamos contentes e satisfeitos quando parte desses serviços antes realizados diante do guichê físico e transferida para o "guichê eletrônico". Nessa medida, o Estado confia ao "usuário-cliente" e não propriamente ao cidadão parte dos serviços terceirizados e não remunerados que outrora era feito pelo servidor público.
Pode ser que o serviço fique mais ágil, mas muitas informações tais como documentos necessários para a execução da demanda e lugar para depositar o material solicitado são imprecisas. Além disso, parte dos cidadãos sem acesso à internet e familiaridade com o computador tem maior dificuldade. Finalmente, as informações para nós solicitadas vão compor imensos bancos de dados em provedores que mal sabemos onde estão e quem os acessa.
Assim, ao refletir sobre o guichê, esse inocente dispositivo técnico e político, estamos no limite refletindo sobre a operacionalização da ação estatal e todos os seus micro mecanismos de exclusão e de controle.